Portas Abertas • 16 set 2007
Para Hans Küng, a religião hoje é novamente um fator de poder. Existe uma grande afluência ao islã e ao budismo, mas não ao cristianismo. Em entrevista à DW-WORLD.DE, o polêmico teólogo suíço aponta os motivos.
DW: Temas religiosos novamente despertam um enorme interesse das pessoas, não só na Alemanha. Pode-se falar de um retorno das religiões?
Hans Küng: Retorno das religiões – isso é uma expressão ambivalente. A religião nunca sumiu. Como a música, a religião é algo que permanece, mesmo que por um certo tempo seja suplantada. É certo que, desde o ressurgimento do islã, desde a fundação da República Islâmica do Irã em 1979, os europeus se conscientizaram de que não determinam o mundo sozinhos. Durante muito tempo, a Europa secularizada não percebeu que é um caso especial e que a religião em outros lugares é um poder.
DW: "Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões! Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões". Essas duas frases foram elaboradas pelo senhor. O desenvolvimento da comunicação via internet pode melhorar o diálogo entre as religiões?
Em princípio, eu diria que sim, mesmo que isso implique uma série de problemas. É positivo que hoje possamos estar bem informados sobre outras religiões. Uma outra questão naturalmente é se pretende-se estar informado. Há pessoas que não o querem, que já sabem tudo antes, sem que tenham estudado o islã.
DW: Quem não quer saber isso?
Por um lado, são os cristãos fundamentalistas, que seguem literalmente a Bíblia e dizem que não precisam das outras religiões. Mas podem ser também pessoas muito secularizadas, dogmáticas do laicismo. Estes já coram quando simplesmente se fala a palavra religião, e acham que sobre isso não se precisa falar na escola. Eles têm dificuldade com o fato de que a religião novamente representa um fator de poder na história mundial.
DW: De acordo com uma pesquisa representativa, o cristianismo não é mais a religião mais simpática aos alemães e, sim, o budismo. Como o senhor interpreta isso?
O budismo é visto no Ocidente como uma religião livre de dogmas, sem muitas prescrições. Trata-se de uma religião voltada para dentro, que dá importância à meditação, que não tem uma imagem demasiado antropomorfa, concreta, da última realidade. O outro fato é que o cristianismo, com sua concentração de poder, irrita muita gente.
Quando temos um papa que aparece o tempo todo, que, como senhor espiritual do mundo, tem a pretensão de que só quem está com ele é um cristão verdadeiro, que somente sua Igreja Católica Romana é a verdadeira igreja, então isso irrita muitas pessoas. E, mesmo que não protestem publicamente, elas se afastam e dizem que não querem ter nada a ver com isso.
DW: Voltemos ao islã. Na pergunta sobre a "religião mais pacífica", o budismo lidera com 43% contra 41% do cristianismo. O islã fica com apenas 11% nesse ranking. O islã é uma imagem do inimigo no Ocidente?
Sim, o islã representa sem dúvida uma imagem do inimigo no Ocidente, visto que o Ocidente só se concentra em determinados pontos do islã. Isso já vale para a história. Os europeus o vêem sob o ponto de vista do avanço do islã do norte da África até a Espanha entre os séculos 8º e 15º e do domínio otomano nos Bálcãs. Mas não se vê nesse contexto que os cristãos não só realizaram as cruzadas, como também colonizaram todo o mundo islâmico, do Marrocos até as ilhas da Indonésia, no século 19.
Daí surgem tensões, muitas das quais o Ocidente não resolveu até hoje. Isso vale sobretudo para as relações entre os palestinos e Israel. Se tivesse sido feito um acordo de paz após a Guerra dos Seis Dias, em 1967, nunca teria surgido um Bin Laden, nem teriam ocorrido os ataques ao World Trade Center em 2001.
Em vez disso, propagou-se a sensação de que os ocidentais se fixam inclusive na santa Arábia, se instalam no Afeganistão, avançam em todo lugar, de modo que se formam resistências. Obviamente temos de condenar homens-bomba e atentados. Mas é preciso refletir por que tantos jovens estão tão desesperados a ponto de se colocarem à disposição para tais atentados.
DW: Mesmo que o islã na Europa seja visto com ceticismo, mundialmente ele tem uma grande atratividade, principalmente para os jovens. Há 1,3 bilhão de muçulmanos e a tendência é que esse número aumente. De Rabat (capital do Marrocos) a Damasco há grupos políticos islâmicos que se tornam cada vez mais fortes. A que se deve isso? Os motivos são religiosos ou sociais?
Ambos. São grupos religiosos que se empenham pelas pessoas. Muitos muçulmanos nesses países têm a sensação de que as elites governantes têm uma vida própria e pouco se importam com o povo. Os grupos fundamentalistas islâmicos – ou como se queira chamá-los – se esforçam muito para fazer algo pelas pessoas. Eles providenciam escolas e educação, dão roupa e alimentação.
Por que o Hamas venceu as eleições? Porque ele se empenhou pelas pessoas. Uma das maiores tolices da política ocidental – aliás, corroborada pela política alemã – foi não reconhecer essas eleições democráticas. Em vez disso, se adverte: vocês precisam reconhecer Israel! Diga isso a pessoas que há décadas são aterrorizadas por uma potência de ocupação. Não é dessa forma que se resolvem problemas. Deve-se reconhecer que há partidos que, sob determinadas circunstâncias, têm o islã como base, mas se empenham pelas pessoas.
Um exemplo melhor é o partido do primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, na Turquia. Por que eles venceram? Porque eles se empenharam pelas pessoas. Apesar de todas as fraquezas que eles têm, mostraram que conseguiram avanços enormes para o país e de forma alguma criaram um Estado islâmico como o Irã. Eles querem uma democracia, mas também não querem degradar o islã unicamente à esfera pessoal, como aconteceu sobAtatürk, fundador do país.
DW: O senhor certa vez classificou a Turquia como "laboratório da democracia". É possível conciliar fé, religião com democracia?
A religião pode conviver com a democracia. Os principais arquitetos da unificação européia, de Charles de Gaulle e Konrad Adenauer a Robert Schuman e Alcide de Gasperi, eram cristãos praticantes. O fato de o islã no momento ter mais problemas com a democracia do que com o cristianismo, se deve a que, no islã, ao contrário do que ocorreu no cristianismo e no judaísmo, não houve reforma e iluminismo – à exceção de alguns círculos. Quem pretende ajudar ali precisa apoiar as forças moderadas e isolar os radicais. A maior tolice é enfrentar essa gente com exércitos. Isso é tão estúpido quanto seria enfrentar a máfia com aviões de combate.
O teólogo católico e crítico da Igreja, Hans Küng, ganhou fama como um precursor do diálogo entre as religiões e como fundador do projeto Etos Mundial. Em 1979, o Vaticano cassou-lhe a licença para lecionar Teologia por ter colocado em dúvida a infalibilidade do papa. Em 2005, ele foi recebido por Bento 16 para uma conversa.
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